«Estes textos são apenas ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.»

terça-feira, 26 de maio de 2020

A Terra anda ressequida e agressiva


O Sol fica escuro porque uma nuvem de fumo teima em lhe fazer sombra. Mesmo que o dia ainda esteja a meio, as pessoas não sabem se o mesmo é depois do inicio se do fim.
Nem a própria Terra já sabe a quantas anda. Os passarinhos amedrontam-se pelo silêncio das folhas das árvores. 0 Tempo parou, ou mudou. Ninguém sabe.
As parras das videiras murcham e os cachos estão mirrados. Aqui e ali, as poucas oliveiras transformam-se de verde para cinzento. A terra, de seca tão estar, começa a gretar, como gretadas continuam as mãos de quem a amanha. O poço que transbordava água deixa um desagradável cheiro. Tão mal cheiroso, que até os pássaros que costumavam poisar nas suas bordas fogem como se ali estivesse o diabo.
A velha barraca, feita de canas e tapada com telha-vã, segura por quatro fueiros, que servia para a tosquia dos carneiros já não se segura em pé. Toda ela se vai desfazendo. Basta um pouco de Vento e está num fanico.
Perdido no meio do seco, um escanzelado cão, raquítico e remeloso, cercado de carraças, olha para o horizonte como procurando um azimute. Em cima, transporta sem saber, ou finge não saber, uma amostra de arvela. Traz o bico aberto como implorando ao vizinho de baixo, o que os dois procuram. Calcorreados alguns metros, caiem os dois, sem saber o porquê. Bem perto paira o sinal da escuridão. Um coelho e um pombo estão em fanicos. A terra mãe recusou-lhes o sustento da vida. Poucos dias passarão para que apenas reste o esqueleto. Já não há uma malga de pão.
Os dois viajantes, acabados de chegar, não têm tempo de se aperceber que acabaram de entrar na trilogia final da vida. Ali tudo acaba, tudo deixa de ter vida. Caminhando para a terra mal cheirosa, rasteja uma sardanisca que nem com o rabo pode. Aos poucos vão-se juntando onde tudo começou.
Um pouco mais longe, uma vala, em tempos, chamada de real, está amargurada, porque deixou de alimentar quem nela vivia ou dela dependia. Onde havia água cristalina, passou a haver um verde seco e pegajoso. Mal cheiroso tornou-se o que recentemente bem cheirava.
Os salgueiros que junto dela faziam sombra e marachas começam a estar raquíticos de tão secos estarem. A sua casca cai como o gelo quando se derrete com o calor.
A curta distância, dando a impressão que o escuro deixava ver mais longe, nas encostas da serra, os canaviais, perdidos no espaço, mas visíveis de quem precisa das suas canas para arranjar ou espetar as velhas sardinhas sardentas e queimadas pelo tempo, arqueiam-se com o bafo quente e morto que paira no ar para ao mesmo tempo, estarem desfalecidos. Das sinuosidades, sem força, pendem para um lado que nem eles próprios sabem, tal é, o que está escondido ou faz esconder o Sol.
O Vento parou para deixar de varrer com a fresquidão. Toda a verdura murchou para fazer companhia àquela que morreu de tão desnaturada estar.
Acolá, terras cheias de milho. No meio do milheiral e dos estalidos das folhas, por tão secas estarem, ouvem-se gritos alucinantes, vindo não se sabe de onde.
Lá, bem no meio das maçarocas, dois pequenos homens falam sobre o que está a acontecer «Nem a terra já chora. Que vai ser de nós e dos nossos, se tudo assim continuar?»
Enquanto um fala, outro olha para o Céu. «Como é possível o Sol ficar escuro por causa das nuvens vindas não sei d'onde?»
A conversa pára, olhando os dois – por debaixo da pala do boné que de tão gasta estar, sebenta se encontra – para algures, que nem sequer sabem para onde estão a olhar. No vazio das dúvidas assustam-se com o barulho do silêncio.
«Vamos é embora daqui, que alguma coisa vai acontecer!» Aconteceu mesmo. Do outro lado da extrema, uma nuvem baforada desceu demais para apoquentar tudo e todos. Como se de um raio se tratasse, num fósforo, a manada de carneiros derruiu para o chão, que nem uns desalmados. «C’um raio, que lhes aconteceu, meu Deus? Tão bem estavam e num raio d’um figo? ….”
Uma praga maldita por ali passou. De tal maneira endiabrada, que daqui, talvez a razão da quietude daquilo que não se ouvia. Como uma tempestade no deserto, vinda de não se sabe de onde para tudo na frente levar.
Com a aflição da seca e de tanto procurarem o que no afluente devia correr, nunca se lembraram que o gado a alguns dias não bebia água. «Até aquela maldita palha vinda do lado de lá de Espanha, parece que seca a boca aos bichos».
A engrenagem da maldita máquina que fazia o transporte do líquido da «outra parte» tinha estoirado por ter estado a trabalhar em seco. «Seco ficamos agora nós como secos já andam os nossos filhos».
«Raios partam esta vida que nem dá para vivermos com o pouco que a terra nos dá. Que vai ser de nós com esta seca e qual o futuro dos nossos cachopos? Maldita a hora em que me entreguei aos cuidados da amanha. Tivesse perdido o tino».
Bem pregava o queixoso. «Que disseste malvado, que de tão distraído estar a olhar para as nuvens, surdo fiquei!» Que lhe responder da sua pobre sina?
 «Não disse nada companheiro. Apenas disse «raio de sorte a nossa!» para acrescentar «malfadada a hora que a minha mãe me pariu no meio da charneca. Se não o tivesse feito, talvez nunca soubesse o cheiro da terra. Agora sem a mesma não sei viver. Os tempos mudaram. Dantes era tratada por nós, agora é ela que nos trata».

Onde fores feliz, fica


"Onde fores feliz, fica. Onde dormes em paz, sonha. Onde os abraços forem os mais fortes, demora-te. O amor é um bem escasso, cuida-o."

Nasci em tempos rudes


Aceitei contradições, lutas e pedras como lições de vida e delas me sirvo. Aprendi a viver. 
«Cora Coralina»

domingo, 24 de maio de 2020

ÀS VEZES SINTO AQUELE VENTO QUE VEM DO LADO DE LÁ DAS DUNAS...


E que vem envolvido em areia para depois ter que  esconder-me junto do teu pescoço e debaixo do teu longo cabelo.
"Lá vens tu esconder-te em mim..."
As dunas que deviam nos proteger do vento e da areia...
"Vamos ao banho que tenho o cabelo cheio de areia..."
Adoro ir atrás de ti e ver o teu corpo a bambolear para depois andares ao meu colo no mar.
Momentos muito nossos.
Viverei sempre com o teu sabor em mim.




JÁ FUI FELIZ AQUI


Casal conhecido foi passar o fim de semana, que hoje termina, próximo da Serra da Boa Viagem.
Local onde o mar é agreste e o vento assustador.
Mais abaixo da serra a cidade linda onde o mar banha a rainha das praias.
Enviou-me algumas  fotografias.
Gostei de as ver porque nesta cidade já fui feliz.
Às vezes sinto saudades das saudades que tem marcado a minha vida.
Um vida cheia de paixões e de entregas para com a vida.


Foi uma cidade que adorei e que faz parte de mim porquanto foi nela que renasceu a seiva do amor que há em mim e outra que me deram.
Amei e fui amado.
No meio deste amor havia uma criança que foi a razão de tudo.
O tempo se encarregou de fazer aquilo que não deveria ter feito:
De separar-nos.
Uma separação que ainda hoje me marca e quando me lembro dela sinto uma enorme dor dentro de mim.


A DIGNA PROFISSÃO DE FERRADOR




Patacão é uma pacata aldeia situada algures nas margens do Tejo. Povoação esta com cerca de duas mil almas. Nela vive Camilo Santos alcunhado já vai para algumas dezenas de anos por “Camilo Serra-Cornos”. Possuidor e respeitado pela sua profissão que de tão nobre ser, tão poucas existem por terras do interior. Todos que precisam dos seus préstimos o conhecem. Vem dos confins do mundo em busca da perfeição daquilo que aplica quando executa o melhor que sabe fazer: «ferrar bestas» assim apregoa Camilo.
Casado, já vai para sessenta anos com a Milinha, formam um casal de anciãos, fazendo inveja a muitos outros. Não há nenhuma excursão domingueira que a D. Noémia leve a efeito que não conte com a presença dos dois. No autocarro a viagem é de alegria contagiante. Cantam e dançam, valendo o casal por todos os acompanhantes, porque este «dia de descanso é para passear». Nos outros, Camilo trabalha que se farta. Ainda o Sol se esconde do lado de lá da maracha já ele deu de comer ao gado como tomou o «mata-bicho» para ter forças nas actividades ligadas à sua profissão. Esta exige-lhe a máxima atenção e esforço, porquanto de vez em quando «uma besta tresloucada teima em dar coices». Como só ele sabe da arte, tem que se resguardar a si próprio, pois nas «redondezas não existe tamanho entendido». Não ignora que quando «partir para o outro lado» os clientes vão ficar aflitos para encontrar quem lhes faça aquilo que só ele sabe e pode.
Não tem medo do trabalho que «está para durar». Apenas o assusta, como à sua companheira, os dias invernosos por causa do barulho que os salgueiros teimam em fazer quando o Vento os apoquenta. «Cambada de árvores que se dobram até ao chão mas nunca quebram». Até parece que o «diabo anda à solta por estas bandas parecendo que o”siroco” quer levar tudo que encontra pela frente».
Quando vai à Sede da vila, todos o cumprimentam, mesmo sabendo, que alguns lhe acenam por causa da sua profissão e da alcunha. Talvez não tenham noção é que Camilo lhes vai tirando do bolso a sua subsistência, permitindo-lhe levar o resto da vida desafogado e rindo-se para dentro de si com o pensamento daquilo que só ele sabe mas que não diz a ninguém.
Na lista de clientes, que têm como “fixos” contam-se a continuidade semanal de «doutorados e ilustres agricultores. Nos dias que correm ter uma burro ou um cavalo é sinónimo de riqueza». Deste desafogo vive Camilo e aqueles que dele dependem. Alguns clientes vêem de bastante longe. Outros para se destacarem, mandam os motoristas buscar o ferrador que para o efeito faz-se «acompanhar do ferramental para nada falte» a quem tão bem paga.
Recentemente apareceu no Patacão um idoso, vindo do Norte. Bem janota, de saco às costas, trazendo no interior as migalhas para o dia depois de já ter percorrido caminhos serpenteados na busca de quem lhe valha no arranjo do seu animal por «causa da falta de ferrado, que dia após dia só faz coxear».
Quando  entrou na barbearia do senhor Canos, talvez por entender que é o melhor ponto de encontro, perguntou pela estância do curador, de quem já a «algum tempo tem ouvido dizer as melhores alusões». Dos presentes, respondeu o habitual pândego das redondezas: «amigo, não tem nada que errar, logo que chegue à “Rua do Taborda” junto ao largo da igreja, na primeira casa da esquina é aí que mora o “Serra-Cornos”».
O desconhecido pasmado com a alcunha interpelou o falador se na verdade «esse é o nome de tal ilustre?». O gaiteiro com «cara de puxar para o gozo» afirmou-lhe: «É sim senhor. Vá com Deus e descanse porque é assim que o dito é conhecido por estas paragens. Poucos sabem de seu nome verdadeiro. Quando bater à porta, chame-o pela alcunha».
O pobre homem desconhecedor das partidas de tal brincalhão, assim fez. Logo localizada a habitação, bateu no velho postigo, aparecendo-lhe então a Milinha que lhe perguntou: «que deseja vossemecê a estas horas?» disse-lhe então o forasteiro: «é aqui que mora o “Serra-Cornos”?».
Milinha, olhando bem olhos nos olhos o viajante, dando a impressão que não estava a ouvir bem a pergunta, educadamente volta-lhe as costas, para gritar de seguida bem alto para o marido: «Camilo vem já à porta que está aqui um desalmado que os quer serrados!»
«acMMXX»

sábado, 23 de maio de 2020

LASSA: UMA PRINCESA CIGANA QUE TANTO AMEI




Lassa minha amiga cigana, tem um coração do «tamanho do mundo». É capaz de comprar quatro pares de sapatos para apenas usar um e dar os restantes a quem mais deles precisar. Os seus olhos «achinesados» e os seus longos e sedosos cabelos fazem dela uma linda mulher. Sabe como ninguém que o jasmim é a única substancia que faz do perfume uma das «maravilhas do mundo». Às vezes quando conversamos vejo as suas lágrimas a enrolarem-se no brilho dos seus olhos. Uma mulher cheia de contrastes.

Como princesa que é e cigana que se orgulha de ser contou-me que na «fé dos ciganos» ainda continua a existir a lenda das lendas: «no passado tinham um rei, que guiava sabiamente o povo numa cidade maravilhosa da Índia chamada Sind. Ali o povo era muito feliz, até que hordas de muçulmanos expulsaram os ciganos, destruindo a sua cidade. Desde então foram obrigados a vaguear de uma nação para outra».
Gosta de caminhar sob as estrelas porque «se pode ler nelas o futuro e as estrelas possuem o filtro do amor para contarem coisas estranhas sobre os ciganos. Os ciganos sabem explicar as coisas nas quais crêem de uma forma muito singular».
A mistura de sangue que lhe corre nas veias: árabe, africano, cigano, indiano, europeu, fazem com que seja um «cocktail» completo. Mulher – criança, rebelde de espírito, doce de alma e imprevisível como uma animal selvagem..., assim é Lassa. Enigmática, um tanto misteriosa e até com uma certa dose de loucazinha, não deixa de ser gostosa.
Esta cigana adorava que o mundo fosse um navio para gostar de estar em cima do mastro para desfrutar de toda a visão do mar, da terra e do céu. Apegada demais à natureza gosta de sentir os seus pés pisarem terra firme, gosta de sentir as ondas batendo no seu corpo, adora respirar o ar puro das planícies, montanhas e vales, adora ainda mais estar longe da cidade e sentir de corpo e alma toda a beleza única e maravilhosa do campo e do mato.
Lassa, princesa cigana de Panjane – como lhe chamavam – nasceu próximo das longas matas onde a felicidade apertava os corações e onde diziam ter passado reis e rainhas. Uma terra que por muitos anos, no tempo dos descobridores europeus e dos primeiros comerciantes árabes, foi conhecida como a “Terra das Almas Perdidas” pelo zumbido arrepiante que a brisa vinda do rio faz, em sintonia com a poeira vermelha que se levantava.
A segunda de três irmãs, estudou sempre em colégios de freiras e sempre se lembra de andar pelas ruas e campos à vontade, a maior parte das vezes descalça, que era como gostava de andar, porque a harmonia singular que tudo tem com a natureza com o espírito, com a alma, com o próprio céu tão aberto e esplêndido lhe deu a sensação de que tudo é uma sintonia que emana das águas mornas e calmas do rio e da brisa leve e árida que sopra.
Panjane é uma cidade linda e calma onde todos se conhecem e onde com as irmãs, saía com uma espingarda de pressão de ar para andarem horas no «mato» à caça de pássaros que depois traziam para casa, não isentando que muitas vezes seus pais não tivessem que sair aflitos procurando-as com medo que lhes tivesse acontecido alguma coisa.
Numa vasta planície, próxima de um rio onde vivem juntos crocodilos e hipopótamos, foi o seu berço e o lugar onde nasceu para no quintal da sua casa passar os seus primeiros anos de infância.
É um lugar único onde erguem-se enormes serras e entre elas se estende um vale estreito onde o riozinho sereno corre, sempre manso. E por detrás destas serras, o sol nasce todos os dias para, mais tarde, dar a lugar a uma lua sempre tão vistosa e brilhante. Sobre o vale, meio solitário, os musgos verdes e as dunas de areia vermelha parecem sempre ter estado ali, tão forte é o seu domínio sobre o cenário completo
Sua mãe, mulher única e maravilhosa, ninguém é igual a ela: doce, forte, corajosa, decidida, com um coração enorme e uma alma que se poderia igualar a de uma santa; seu pai: foi um dos homens mais admiráveis que conheceu. Rebelde, aventureiro, frontal e bastante liberal mas ao mesmo tempo amoroso, justo e muito carinhoso.
Tudo o que hoje é deve ao que aprendeu com este homem que mais do que um pai foi um amigo, companheiro e professor da vida, que lhe deixou bem vincada descendência de cigana e europeia.
Da vida faz o lema “mais vale a lágrima da derrota do que vergonha de não ter lutado”. É uma mulher corajosa, porque só a água quente que salpica África lhe dá fulgor para continuar a lutar pelo que acredita para que todos juntos possam viver essa sintonia viciosa da junção da vida com a natureza.
Lassa é uma mulher que nasceu e cresceu com a liberdade dentro dela e talvez por isso seja como um passarinho sem gaiola que voa a qualquer momento.
Quer morrer na sua África que a viu nascer mesmo sabendo que a vida pode acabar de um momento para o outro como a tempestade que não avisa quando vem, mas não quer morrer enquanto viverem os seus sonhos.
«acMMXX»

LEILLA, UMA ESTRELA NO DESERTO



Tinha uns olhos pretos como  uma azeitona que  assentes num branco límpido faziam lembrar o branco  do casario dos montes nas planícies alentejanas. Apenas o seu olhar   mostrava estar sempre numa  agitação de tristeza.  A sua pele com uma cor  a puxar para o cálido do deserto e o seu cabelo escuro fazia com que fosse  uma criança bonita.
Com uma doença esquisita desde a sua nascença, levava já nos seus dez anos  muitos dias passados no parapeito da janela do seu primeiro andar, ora vendo quem passava ora vendo  outras crianças brincando no recreio de uma escola frontal à sua casa que fazia extrema com a rua movimentada. Tão movimentada, que: carros, bicicletas, animais e outros meios de transportes puxados pelo homem, que  com  o pó, que bailava no ar, por causa do movimento e das confusões, fazia da comprida artéria uma babilónia de coisas que tanto  alegrava quem não podia nela circular ou brincar. Depois a elevada temperatura, as vozes misturadas que mais pareciam uma orquestra desafinada, as buzinadelas estonteantes dos carros e a gritaria das crianças faziam deste lugar um sitio encantador, alheando-as dos perigos que as cercavam. 
Às vezes até o menino do golfinho, por andar sempre com o desenho do mamífero estampado na   camisola, passeava ao ombro o seu saguim, dando este guinchos delirantes. Costumava arreganhar os seus pequenos dentes, brancos como os icebergues, para assustar quem distraídamente circulava. O menino do golfinho tinha uma missão: passar de vez enquanto por baixo da janela de  Leilla. Depois assobiava num som agudo, para quem estava em cima, ouvisse e visse que nos seus ombros ia aquilo, que numa troca de olhares,  fazia  macaquices de propósito para quem não podia brincar. Eram estes curtos e mágicos momentos que os dois pequenos seres  sabiam ser exclusivo de ambos. O dono do macaco nunca soube  dos motivos da “criança não   brincar com o seu bicho”. A única coisa que sabia era a amiga do seu bicharoco  “ter uns olhos  lindos com as estrelas do deserto”.
Por não poder andar e ser como  outras crianças, ouvia e via coisas que os adultos não viam ou fingiam não ver. Pela altura e posição que tinha a seu favor estava todos os dias
numa situação de privilegiada. Às vezes sua mãe, para não a contrariar, fazia-lhe as vontades todas. Uma delas era dar-lhe o almoço na boca, mesmo que muitas vezes não soubesse o que estava a comer, tal era a sua curiosidade para ver as brincadeiras das outras crianças. Os seus olhos estavam sempre voltados para quem brincava.
De tão pequena ser, sua boca nunca se abria para qualquer lamento. Sofria interiormente mas evitava que sua mãe se apercebesse. Já a tinha visto muitas vezes chorar e ouvir   palavras confusas, ditas num turbilhão de frases sem nexo, mas compreendendo  que a sua doce e protectora sofria por nada poder fazer. 
A mãe olhava-a bem nos olhos e via que as suas azeitonas brilhavam num choro cujas lágrimas nunca escorriam pela face mas  enrolavam-se naquilo que um dia a sombra da terra taparia para sempre.
O desgosto de ambas era tal, que apenas lamentavam morar num bairro daqueles, onde as disputas da lei do mais forte eram as coisas mais normais deste mundo, fazendo com que muitas vezes a desordem se instalasse na zona e onde nem a policia mostrava vontade de ir, não pelos residentes mas pelos negócios escuros que lá se faziam aos olhos do dia, não havendo interferência de ninguém, excepto daqueles que viviam dos rendimentos dos produtos que vendiam. Um desassossego que importunava quem lá morava como amedrontava quem visse e falasse. 
Muitas vezes as raimonas da bófia, como lhes chamavam os traficantes do bairro, visitavam as ruelas mais escuras mas sempre  vigiadas por quem encostado às velhas e sujas paredes fingia nada ver ou perceber para servirem de pombo correio a quem percebia dos sinais que se perdiam nas noites.
Todos sabiam no mundo em que viviam, mas todos tinham feita a promessa de “nada saber para os outros” de modo a que o silêncio por não ser comprado era ameaçado. “Um inferno este bairro. Se tivesse dinheiro comprava uma casa numa zona sossegada e civilizada nos subúrbios da cidade” dizia muitas vezes a mãe solteira para o seu rebento quando via confusões e a retirava da janela, até ao dia em que esta lhe pediu  para lhe fazer um pudim de leite creme. A mãe que não queria que nada faltasse  a Leilla, porque sabia que a sua vida seria curta, o seu maior desejo era fazer com que se sentisse feliz.  Num instante, correu para a mercearia mais próxima para comprar o que tanto iria adoçar a boca da coisa mais querida que tinha neste mundo.
A força do mal estava atrás da porta e quando nada indicava, rebentou um confusão de fugitivos e fardados, para num abrir e fechar de olhos, os tiros e  balas cruzarem-se por percursos  desconhecidos para quem  já conhecia as sinuosa ruas e esconderijos dos malfeitores.
Uma bala maldita perdeu-se no alvo a atingir para fazer um ricochete embatendo de seguida na testa da pequena criança que nada dizia aos outros mas que tudo via.
Quando chegou a casa com o leite,  satisfeita de mais um capricho ir dar a quem tudo merecia, encontrou no soalho gasto, de tanto pisado estar, sua filha estendida no chão banhada de sangue. 
Branca e transpirando como uma desalmada, apenas viu o pequeno corpo  de Leilla com os olhos  muito abertos olhando para o Céu. Ficou-lhe para sempre a imagem dos pequenos braços abertos estendidos no chão, dando a impressão que esperava a mãe para lhe dar o último abraço. Abraço este que não recebeu mas que deu a quem tanto amava.
Então num relance, levantou-se e olhou para onde a filha sempre olhava mas ninguém viu como nada ouviu.
 Ainda hoje, está por saber como o Sol deixou de entrar em casa ou se alguma tempestade do deserto lhe entrou pela casa adentro levando-lhe  quem tudo era para ela.
Com uma profunda fé,  mas ao mesmo tempo  sentindo  uma revolta interior abalada por desconhecer os desígnios divinos, prometeu a si própria que a partir do momento que deixou de ver e ter a sua pequenina, todos os dias  estará  à janela olhando para onde olhava Leilla,  com a esperança de um dia poder ver no meio de quem brinca alguma estrela ou alguma sombra que a leve a julgar que aquilo que era seu  voltou. Se nada disto acontecer, então que  a sombra escura a leve para junto de quem já não tem.  Nas noites de solidão, lembra-se do calor que dava a quem tanto precisava para se aconchegar no peluche cheio de borboto de tanto mimado ter sido.
«acMMXX»

FÉRIAS NA NAZARÉ



Era sempre a mesma coisa. No primeiro dia do sétimo mês de cada ano, ainda o Sol não tinha nascido, já o Aníbal mais o Alfredo aparelhavam os cavalos às carroças para de seguida descerem o curto espaço que mediava entre o palheiro e a entrada da casa principal. Os patrões iam de férias mais os dois filhos.
Tinham que carregar a trouxa e a alimentação para um mês, numa só carroça. Para além do condutor iam também duas empregadas domésticas. Tudo bem arrumadinho porque o espaço era pouco e a viagem longa. A outra, a mais bonita, era puxada pelo Russo um cavalo empolgante que até parecia sentir-se vaidoso por transportar os seus donos.
Quando a noite desaparecia e no longe se via a bola de fogo, que até parecia que o Céu estava ardendo, já a algum tempo que os seus dois fieis empregados os aguardavam. Partiam bem cedinho para que o calor não os incomodasse mas também para que a viagem decorresse durante a fresquidão da manhã.
Eram viagens longas e atribuladas, algumas tenebrosas, não pelas assombrações de malfeitores, mas pelo caminho da terra ressequida e pelas tortuosas curvas do percurso. Um caminho longo e difícil de fazer. Valia-lhes a confiança do animal que puxava a carroça da frente. O Russo inspirava confiança. Galopava as ladeiras que lhes aparecia pela frente para pouco depois nas descidas os condutores terem que puxar as rédeas
Quando o Russo avistava chão plano, não era preciso dar-lhe rédea solta. Levantava o seu pescoço para ver bem o caminho e numa sacudidela fazia tilintar os guizos. Era o seu momento empolgante. Os viajantes sorriam com esta euforia.
 Era o momento em que o patrão tinha que segurar o chapéu, a patroa os filhos, os empregados os bonés e as empregadas deixavam o seu cabelo desfraldar como uma bandeira em dias de vento.
Dada ordem de marcha, tudo era composto nos devidos lugares para o ultimo a subir, ser o condutor da carroça da frente, já que era o empregado mais velho da casa e de confiança. A próxima e penúltima paragem seria nas proximidades de Alcobaça por escassos minutos. Não que quisessem mas porque os cavalos tinham ainda que fazer a viagem de regresso.
Chegados ao destino, no Picadeiro esperava-os a senhoria. Uma bela nazarena que gostava de receber com todas as mordomias quem acabava de chegar. Os empregados descarregavam a trouxa e demais coisas enquanto uma das empregadas levava as crianças para dentro da casa. A outra seguia imediatamente para a lota do peixe para comprar peixe que tinha sido pescado há poucas horas.
Logo tudo arrumado, seguiam-se as ordens de quem mandava determinar os deveres a quem servia. Uma das suas primeiras atribuições era preparar o almoço. Sardinha assada, assim mandava a tradição. Depois, esperar pela chegada dos banheiros que acompanhariam durante as férias toda a família. Cabia-lhes acompanhar ao mar, como vigiar, quem fosse tomar banho para depois de terminado os envolver em toalhões e acompanhá-los até à barraca, sendo dada especial atenção às crianças.
Todos os dias, depois do jantar, os esposos iam engalanados passear no Picadeiro e conversar um pouco com outros casais. Era o momento que as nazarenas mais gostavam porque as senhoras espalhavam no ar os mais variados odores perfumados e os seus belos vestidos.
 A protectora das crianças seguia a alguma distância de quem lhe dava ordens. A outra ficava em casa esperando pela chegada de quem tinha saído. No dia seguinte seria o inverso. Os condutores das carroças regressavam de onde tinham partido para só voltarem no último dia do mês.
«acMMXX»

sexta-feira, 22 de maio de 2020

ÁS VEZES EMOCIONO-ME COM O QUE VEJO

(*)

Os meus sentimentos fazem-me ser, às vezes, um piegas.
Uma  amiga  costuma dizer-me:
"És um piegas. 
Emocionas-te e choras como se...
Mas gosto desses teus sentimentos.
Mas tambem gosto muito de ti.."
É verdade!
Nasci assim.
Gosto de ser assim.
Quem comigo convive e   me conhece  bem sabe que em termos de sentimentos, sou como a  manteiga.
Quando vi estas fotos fiquei emocionado porque amo esta praia e o "meu mar"  nas profundezas da minha alma.
Amo esta praia mais do que tudo.
As memórias desta praia fazem parte da minha infância e da juventude.
Quando homem nesta praia amei e fui amado.
Aqui tive um grande amor.
A Ana Margarida!
O amor da minha vida.
Amei-a como nunca tinha amado alguém.
E se ela me amava...
Um amor que me marcou profudamente.
Há dias, que, quando acordo e abro as janelas do meu quarto até sinto  o cheiro do meu mar a entrar  pela casa a dentro. 
Quando vou  ver o meu mar a primeira coisa que faço é beijar a areia da minha praia.
Como ela me agradece.

(*) As fotos são da Maria Graciete Brito

quinta-feira, 21 de maio de 2020

OS OLHOS DA MINHA NAMORADA ERAM DOIS DIAMANTES


E as expressões do seu rosto brilhavam de amor.
Nunca mais se esquecerá do dia em que casou.
Para que se recorde sempre de mim ofereci-lhe um fio de ouro para que o use até à eternidade

QUANDO CASEI


Se fosse casado teria feito 49 anos de casado no mês passado.
Hoje lembrei-me deste momento.
Ao mexer nas minhas memórias  voltei a lembrar-me da tristeza que dei à minha mãe no dia de casamento.
A causa?
Recusei-me a vestir o fato escolhido pela minha mãe
Porquê?
Queria que o único adorno usado naquele dia fosse uma aliança.
Dado pela minha namorada.
Como se lhe pudesse dizer sem dizer:
- Olha, estou aqui, como um livro em branco onde podes escrever. 
Não trago bagagem do passado e estou pronto para o futuro contigo.
A minha mãe nunca entendeu a minha razão.
Culpa minha. 
Continuo sem conseguir arranjar explicação melhor.
«acMMXX»

DA MINHA JANELA VEJO O MUNDO

E às vezes para além do infinito

HOJE SINTO SAUDADES DE TI


Quando  tenho saudades de ti e até sinto o cheiro do nosso mar.
Hoje quando abri a janela do terraço lembrei-me de ti.
Olhei para o mar e não te vi.
Onde andas?
«acMMXX»

CONSTRUIREI UM PEQUENO TERRAÇO COM ViSTA PARA O RIO


Construirei um pequeno terraço com vista para o rio, unicamente para que te possa ver chegar quando atracares o teu barco junto à margem.

SEMPRE IMAGINEI FAZÊ-LO


Vou acenar-te com o meu chapéu de palha, como sempre imaginei fazê-lo, e gritar-te de longe que já tenho o teu chá preferido servido na pequena mesa feita de tijolos e tábuas.
«acMMXX»

NÃO COLOCAREI QUADROS NAS PAREDES


Porque acredito que as memórias existem apenas para ser renovadas com o coração.
«acMMXX»

A VIDA NEM SEMPRE FOI MINHA AMIGA


Mas sempre fui seu amigo.
A minha alma sempre acreditou que a minha vida brilharia como o diamante mais lindo do mundo.
Pura ilusão!
Porquê?
Não sei!
Mas sou feliz na mesma.
«acMMXX»

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Sabem o sentimento que fica?


Num passado bem recente, existia um tempo que não me dava tempo, de ir onde podia.
Hoje tenho a permissão do tempo, que me oferece o tempo, mas já não posso ir onde queria.
«CT/acMMXX»

Um dia ...


O teto será de vidro para que se possam ver as estrelas nas noites de lua cheia.

QUANDO PUDER, VOU CONSTRUIR UMA CASA DE MADEIRA NUMA ÁRVORE


Porque nunca o fiz e sempre sonhei fazê-lo quando era miúdo. 
Não sei o que vou sentir, mas vou seguramente sentir algo de novo e agradável. 
Não vou colocar vidros nas janelas, porque quero sentir o vento tocar-me no rosto sempre que estiver a descansar.
«acMMXX»

ADORO O CAMPO...


Tornei-me num "homem do campo".
Adoro o meu "campo".
Gosto de plantar as "minhas coisas".
Aquelas que preciso para meu alimento e dos meus filhos.
Gosto de saber o que comemos.
Gosto pela manhã ir ver o que a natureza já meu deu depois de plantar  na terra o que da terra é.
Gosto de à tarde, pela fresquinha, ir regar as minhas plantações e quando a água toca na terra , sentir aquele cheiro da terra molhada.
Sublime!
Plantei, já vai para algumas semanas, tomateiros.
Já estão carregados de tomatinhos, que mais dia menos dia servirão para as saladas da familia;
Já plantei mais que uma centena de  alfaces e já comi dezenas como os meus filhos.
Tenho as videiras, que plantei, carregadinhas de pequenos  cachos de uvas;
Do meu campo vêem as cenouras para a sopa.
Brevemente virão pepinos e pimentos.
Gosto do que faço,
E também gosto de  ouvir os chilrear das passarinhos que me fazem companhia e esperam pelo momento da rega para molharem o bico.
Gosto de ir ao "campo" rente à noitinha e cheirar o molhado da terra.
Gosto do que  faço,
Gosto de sentir a natureza bem perto de mim e em mim.