«Estes textos são apenas ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.»

sábado, 23 de maio de 2020

LEILLA, UMA ESTRELA NO DESERTO



Tinha uns olhos pretos como  uma azeitona que  assentes num branco límpido faziam lembrar o branco  do casario dos montes nas planícies alentejanas. Apenas o seu olhar   mostrava estar sempre numa  agitação de tristeza.  A sua pele com uma cor  a puxar para o cálido do deserto e o seu cabelo escuro fazia com que fosse  uma criança bonita.
Com uma doença esquisita desde a sua nascença, levava já nos seus dez anos  muitos dias passados no parapeito da janela do seu primeiro andar, ora vendo quem passava ora vendo  outras crianças brincando no recreio de uma escola frontal à sua casa que fazia extrema com a rua movimentada. Tão movimentada, que: carros, bicicletas, animais e outros meios de transportes puxados pelo homem, que  com  o pó, que bailava no ar, por causa do movimento e das confusões, fazia da comprida artéria uma babilónia de coisas que tanto  alegrava quem não podia nela circular ou brincar. Depois a elevada temperatura, as vozes misturadas que mais pareciam uma orquestra desafinada, as buzinadelas estonteantes dos carros e a gritaria das crianças faziam deste lugar um sitio encantador, alheando-as dos perigos que as cercavam. 
Às vezes até o menino do golfinho, por andar sempre com o desenho do mamífero estampado na   camisola, passeava ao ombro o seu saguim, dando este guinchos delirantes. Costumava arreganhar os seus pequenos dentes, brancos como os icebergues, para assustar quem distraídamente circulava. O menino do golfinho tinha uma missão: passar de vez enquanto por baixo da janela de  Leilla. Depois assobiava num som agudo, para quem estava em cima, ouvisse e visse que nos seus ombros ia aquilo, que numa troca de olhares,  fazia  macaquices de propósito para quem não podia brincar. Eram estes curtos e mágicos momentos que os dois pequenos seres  sabiam ser exclusivo de ambos. O dono do macaco nunca soube  dos motivos da “criança não   brincar com o seu bicho”. A única coisa que sabia era a amiga do seu bicharoco  “ter uns olhos  lindos com as estrelas do deserto”.
Por não poder andar e ser como  outras crianças, ouvia e via coisas que os adultos não viam ou fingiam não ver. Pela altura e posição que tinha a seu favor estava todos os dias
numa situação de privilegiada. Às vezes sua mãe, para não a contrariar, fazia-lhe as vontades todas. Uma delas era dar-lhe o almoço na boca, mesmo que muitas vezes não soubesse o que estava a comer, tal era a sua curiosidade para ver as brincadeiras das outras crianças. Os seus olhos estavam sempre voltados para quem brincava.
De tão pequena ser, sua boca nunca se abria para qualquer lamento. Sofria interiormente mas evitava que sua mãe se apercebesse. Já a tinha visto muitas vezes chorar e ouvir   palavras confusas, ditas num turbilhão de frases sem nexo, mas compreendendo  que a sua doce e protectora sofria por nada poder fazer. 
A mãe olhava-a bem nos olhos e via que as suas azeitonas brilhavam num choro cujas lágrimas nunca escorriam pela face mas  enrolavam-se naquilo que um dia a sombra da terra taparia para sempre.
O desgosto de ambas era tal, que apenas lamentavam morar num bairro daqueles, onde as disputas da lei do mais forte eram as coisas mais normais deste mundo, fazendo com que muitas vezes a desordem se instalasse na zona e onde nem a policia mostrava vontade de ir, não pelos residentes mas pelos negócios escuros que lá se faziam aos olhos do dia, não havendo interferência de ninguém, excepto daqueles que viviam dos rendimentos dos produtos que vendiam. Um desassossego que importunava quem lá morava como amedrontava quem visse e falasse. 
Muitas vezes as raimonas da bófia, como lhes chamavam os traficantes do bairro, visitavam as ruelas mais escuras mas sempre  vigiadas por quem encostado às velhas e sujas paredes fingia nada ver ou perceber para servirem de pombo correio a quem percebia dos sinais que se perdiam nas noites.
Todos sabiam no mundo em que viviam, mas todos tinham feita a promessa de “nada saber para os outros” de modo a que o silêncio por não ser comprado era ameaçado. “Um inferno este bairro. Se tivesse dinheiro comprava uma casa numa zona sossegada e civilizada nos subúrbios da cidade” dizia muitas vezes a mãe solteira para o seu rebento quando via confusões e a retirava da janela, até ao dia em que esta lhe pediu  para lhe fazer um pudim de leite creme. A mãe que não queria que nada faltasse  a Leilla, porque sabia que a sua vida seria curta, o seu maior desejo era fazer com que se sentisse feliz.  Num instante, correu para a mercearia mais próxima para comprar o que tanto iria adoçar a boca da coisa mais querida que tinha neste mundo.
A força do mal estava atrás da porta e quando nada indicava, rebentou um confusão de fugitivos e fardados, para num abrir e fechar de olhos, os tiros e  balas cruzarem-se por percursos  desconhecidos para quem  já conhecia as sinuosa ruas e esconderijos dos malfeitores.
Uma bala maldita perdeu-se no alvo a atingir para fazer um ricochete embatendo de seguida na testa da pequena criança que nada dizia aos outros mas que tudo via.
Quando chegou a casa com o leite,  satisfeita de mais um capricho ir dar a quem tudo merecia, encontrou no soalho gasto, de tanto pisado estar, sua filha estendida no chão banhada de sangue. 
Branca e transpirando como uma desalmada, apenas viu o pequeno corpo  de Leilla com os olhos  muito abertos olhando para o Céu. Ficou-lhe para sempre a imagem dos pequenos braços abertos estendidos no chão, dando a impressão que esperava a mãe para lhe dar o último abraço. Abraço este que não recebeu mas que deu a quem tanto amava.
Então num relance, levantou-se e olhou para onde a filha sempre olhava mas ninguém viu como nada ouviu.
 Ainda hoje, está por saber como o Sol deixou de entrar em casa ou se alguma tempestade do deserto lhe entrou pela casa adentro levando-lhe  quem tudo era para ela.
Com uma profunda fé,  mas ao mesmo tempo  sentindo  uma revolta interior abalada por desconhecer os desígnios divinos, prometeu a si própria que a partir do momento que deixou de ver e ter a sua pequenina, todos os dias  estará  à janela olhando para onde olhava Leilla,  com a esperança de um dia poder ver no meio de quem brinca alguma estrela ou alguma sombra que a leve a julgar que aquilo que era seu  voltou. Se nada disto acontecer, então que  a sombra escura a leve para junto de quem já não tem.  Nas noites de solidão, lembra-se do calor que dava a quem tanto precisava para se aconchegar no peluche cheio de borboto de tanto mimado ter sido.
«acMMXX»

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