Por: António Centeio
Porque a tarde outonal e a temperatura
estava amena, fui à esplanada do Jardim das Rosas para saborear
um pouco daquilo que só este espaço de lazer sabe oferecer. Sentado numa mesa,
olhava para as folhas que o leve Vento despregava suavemente das árvores.
Algumas pessoas, também lá se
encontravam. Umas, liam os jornais do
dia, enquanto outras, conversavam dos
mais variados assuntos, mas nenhuma contemplava
a beleza e os contrastes da natureza.
Acompanhando o cair de uma folha
do ramo de uma árvore, torcida pelo
passar dos anos e de tão queimada estar do calor, os meus olhos seguiram todo o
seu percurso. Quando se acomodou na terra fria, vi no meio de duas árvores uma pequena sombra de
algo que parecia ser uma pessoa.
Continuando a olhar, esperei algum tempo para ver se não estava a ter alguma ilusão óptica ou se o perfil se
deslocava. Nada aconteceu. Então, levantei-me e saí da mesa, para ir ver o que era ou quem era porque a rectaguarda
do grosso tronco da árvore não me permitia destrinçar a verdade da ilusão
sombria de um julgado perfil humano.
Voltado para a avenida, sozinho e encostado à árvore acastanhada estava
uma fraca figura humana com pouco mais
de doze anos, que passava despercebida aos menos atentos.
Perturbador, era o seu estado físico de tão magro estar.
Vestido com roupas todas
desalinhadas e amarrotadas - talvez por dormir
com elas em todos os sítios menos numa cama; com um cachecol de lã axadrezado no pescoço a aconchegá-lo, de cor castanha como a árvore que o
amparava; sapatos a puxarem para o
desleixado e a mostrarem que os seus melhores dias já há muito tinham acabado; os seus cabelos lisos, fininhos e alourados, não eram nem curtos nem compridos,
simplesmente estavam oleosos e sujos; uma cara linda mas com uma cor torrada de tanto queimada
estar pelo Sol para além de ressequida pelo Vento; orelhas transparentes pela claridade que
nelas trespassava e um nariz achatado.
Com
uns olhos azuis da cor do mar,
uma pequena lágrima vinda do seu olho direito, evidenciava uma profunda dor e
amargura - talvez por a vida não lhe sorrir; olheiras
profundas, demonstravam que dormir e comer eram coisas há muito que seu
franzino corpo necessitava.
No momento exacto que olhei para
esta pequena figura de gente, senti a minha voz interior, dizendo “és um privilegiado da vida; vives num mundo diferente e nem sequer
abrevias os passos apressados que dás durante o dia para pensares
e veres como é o mundo destas crianças e tudo que o rodeia” É
verdade! Reconheço que muitas vezes a
correria da vida e o desejo de chegar mais depressa, impossibilita-me – aos outros também – de
olhar para o que se passa mesmo ao
meu lado. Esta voz interior,
mexeu bem dentro de mim. Levou-me a
pensar que às vezes para encontrarmos o caminho certo temos que andar por
caminhos errados.
- Quem és tu e porque estás sozinho
aqui?
Olhando-me «olhos nos olhos» respondeu-me:
- Que tem o senhor a haver com
isso?
Das suas palavras, compreendi logo
na aspereza das mesmas, que a vida não
lhe sorria.
- Queres sentar-te comigo, ali esplanada, que ofereço-te um copo de leite e umas
torradinhas, porque pareces estar com
fome?
Continuando a olhar-me, bem lá no «seu
fundo» algo lhe disse que eu merecia a confiança que estava tentando
conquistar, respondendo-me:
- Sim, aceito, porque tenho tanta
fome, senhor. Já quase à quatro dias que nada mastigo.
Devorou tudo com satisfação o que
lhe prometi e mais alguma coisa. Depois de ter conversado um pouco com ele, agora mais confiante, começou a «abrir-se» contando-me um pouco da sua atribulada e
curta vida. A ingratidão da vida, o ambiente em que fora criado e a revolta
interior, eram coisas que se reflectiam na nossa conversa.
Seu pai um músico saltimbanco (vindo
e fugindo da miséria espanhola, veio para o nosso país, porque alguém lhe disse que “ em Portugal, ganha-se bem
a vida pedindo esmola) explorava-o
com o pouco que sabia tocar, já que tinha o dom de aprender com o
ouvido. Um luxo demais para uma pequena criança, que bem sentia na pele, o
preço de saber aquilo que nunca deveria saber.
Obrigava-o a tocar melodias
tristes nos locais de grande movimento (
tinha vindo de uma movimentada artéria das Caldas da Rainha) com uma «concertina»
toda esfarrapada, para que as pessoas, dele tivessem pena e lhes dessem
esmola, que por sua vez, tinha que restituir diariamente ao pai todo o valor obtido.
Quando não lhe davam o valor que o
pai achava justo, a agressão e as ofensas eram coisas comuns na vida e ambiente
familiar do pequeno, se ambiente familiar se pode chamar, a quem dormia dentro
de um automóvel sem vidros, com bancos esfarrapados e apenas abafado por um
pano roto e encardido de tanto ser usado. Para agravar mais a situação, o seu estômago
já não recebia qualquer tipo de
alimentação à alguns dias, porque não «trabalhou»
para ter mais receitas, que o pai gostava de receber e precisava para gastar no álcool e tabaco, enquanto o seu
rebento tocava na frente daqueles que sentados nas esplanadas das zonas de
lazer, saboreavam os melhores acepipes, olhando-o com desprezo por estar
descalço, sujo, roto e, ainda por cima, tocando músicas nostálgicas,
quando na verdade queriam era: divertirem-se, pouco lhes interessando a miséria
que na sua frente aguentava a passagem das tempestades.
Ainda hoje eu sinto na minha boca o
gosto amargo das minhas lágrimas, quando o «pequeno saltimbanco» depois
de satisfeita a sua avidez, com uns olhos ternos, mas tão cavados, olha para as
profundezas da minha alma - até me
arrepiei, tal era a sua convicção -
dizendo “senhor, é tão triste estar a tocar e na minha frente ver as
pessoas comendo e bebendo coisas que eu não sei o gosto que tem e pensar
se algum dia terei o prazer que estavam a ter” para acrescentar docemente “
sabe quando pesa a concertina?” - claro que não sabia nem sei - “
às vezes, quando tocava,
encolhia-me com dores na minha
barriga com tanta fome”.
Porque as tardes no Outono são mais
curtas e porque o nosso dialogo já ia longo, perguntei-lhe a razão de estar
sozinho na cidade, para me responder “
fugi de meu pai e das arrebatadas que me dava todos os dias por não lhe dar o
dinheiro que queria”. No momento, fiquei sem argumentos tendo em atenção a
idade dele.
- Para onde vais agora? sem dinheiro, sem documentos, sem conheceres os locais e tão pequeno que
és?
Erguendo o seu curto
tronco e olhando para o Céu, que tinha a cor dos seus olhos, disse-me:
- Nem eu sei! Não é por aqui que
se vai para Fátima?
Não foi a pé para Fátima, como
pensava ir. Levei-o no meu automóvel e
deixei-o numa casa de crianças carenciadas e abandonadas.
Hoje sei, que está bem. Ali está e
ali quer ficar; ali quer aprender a ser um homem justo, para que um dia “possa estar sentado numa esplanada vendo
o seu filho a comer um gelado e não ver na sua frente um «pequeno saltimbanco”. Assim, se
despediu de mim.