Por: António Centeio
O livro da vida
será sempre um livro fechado. Nunca sabemos o que lá está escrito. Se
pudéssemos saber não deixaríamos a vida pregar-nos partidas.
Quando menos
esperamos, vai daí, mais um turbilhão. Uns para cima outros para baixo. O pior
de todos é aquele que leva as pessoas para baixo e depois não se conseguem
levantar. Os outros, mais tarde ou mais cedo levantar-se-ão para continuar o
caminho. Alguns são bem tortuosos outros íngremes. Também há pessoas que os
procuram; outros fogem deles a sete pés.
Existem pessoas que
só se sentem bem quando estão metidos em sarilhos. Somos como somos. Devemos
compreender e tolerar as decisões de cada um. Razão tinha o poeta quando disse
que deveríamos «projectar a nossa vida apenas por dias». O tempo se encarregará
do resto.
Abílio foi até
aos trinta anos um homem exemplar. Bom marido, bom pai e um óptimo trabalhador.
Era servente de pedreiro. Profissão que exige um enorme esforço físico para
além de ter como companhia, o frio, a chuva e o calor. Quando vinha às sextas-feiras,
depois de ganha a semana, o seu percurso tinha que sofrer um interregno no
caminho das Fazendas. Os amigos
faziam o mesmo. Ficava-lhe mal não se associar. Conversa daqui conversa dali,
os petiscos eram sempre regados de copitos
de tinto.
Quando chegava a
casa, a mulher já sabia o que a esperava. Rádio aos altos gritos e toca a
dançar em pleno quintal até as tantas da manhã. O filho, um petiz, quisesse ou
não, tinha que assistir à festa que para não variar acabava sempre numa valente
cena de pancada para quem não merecia e muitos menos para quem olhava e ouvia a
linguagem usada. Nada podia fazer, senão também sobrava para ele.
Há pessoas que
gostam de levar pancada, como viver na lamúria, em vez de procurarem melhores
caminhos ou novas vidas.
A vizinhança
dizia muitas vezes que «certas mulheres, quanto mais lhe batem mais gostam dos
maridos». A Abelina era uma destas. Uma vez foi parar ao hospital com um braço
partido. Como não tinha juízo poucos dias depois levou uma tal sova que as aduelas foram dentro. Nunca reclamava do
que lhe acontecia.
A sua satisfação
era quando o seu Abílio a levava a passear na motorizada até à Nazaré.
Sentavam-se tardes inteiras a olhar para o mar. O filho só deixou de ir quando
já não cabia no meio dos dois e os homens da brigada de trânsito teimaram em
começar a passar umas multazinhas.
Perdoava-lhe e
esquecia-se de tudo. O Abílio quando abria a boca o hálito cheirava mais mal
que uma panela de feijocas estorradas. Anos e anos durou este calvário. Meteu
na cabeça que devia ter uma amante e bem o fez.
Mais valia
valentes cargas de porrada que o seu homem ter outra substituta para os tempos
livres. Não bastava o que tinha que aturar quando o marido parava nas Fazendas quanto mais agora seguir
caminho para junto da matrona. Se levava porrada começou a levar mais, não
pelas bebedeiras que apanhava mas porque precisava de dinheiro e não o tinha.
O filho só
exigia roupas de marca. Não estava
para sofrer mais. Um dia lembrou-se de dizer que a sua «vida não era uma vida
como a das outras pessoas». Agarrou nas malas e aí vai ela para junto de mãe,
ali, para os lados de Rio Maior. Nunca o Abílio pensou ter uma surpresa destas.
Pena foi que o
filho comesse pela tabela, sendo apanhado no meio da tempestade quando menos
esperava. O pequeno sentiu o desabar de tudo. Porque lhe faltava o seu mundo foi desabafar para junto de
quem nunca deveria ter ido. Hoje, vive de expedientes com os amigos para dormir
debaixo dos vãos de escada que encontra pela cidade.
A prisão já lhe
fez companhia algumas vezes. Como nunca conseguiu abrir o livro da sua vida, em
vez de vir melhor quando saiu da prisão ainda veio pior. Sabe mais daquilo que
nunca deveria saber.
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