Por: António Centeio
Amélia era uma
mulher vistosa até ao dia que num acidente de automóvel ficou com mazelas
deixando-lhe deformações físicas. Nunca mais foi a mesma. A sua beleza exterior
deixou de ter aquele encanto que tanto se orgulhava. Criou em si própria
complexos que quando se via ao espelho ficava nervosa. O médico dizia-lhe para
consolo do seu espirito «são complexos». Não estava longe da verdade. Continua sendo a mulher linda
e encantadora que conheci. O tempo é como uma borracha, tudo apaga. Hoje, é uma
pessoa comum não ligando quando a olham. Sempre foi uma mulher empreendedora.
Mesmo sendo
impossível deter o rio da vida e sem um centavo no bolso, mas com uma fé
infinita, Amélia, continua a ser aquela mulher que sempre admirei tanto em
corpo como em alma. Abriu uma clinica médica onde existem as mais variadas
especialidades.
Antes do
acidente, costumava dizer que existe uma linguagem universal que está para além
das palavras. Se nós aprendermos a decifrá-la conseguiremos compreender o
mundo. «Tudo é uma coisa só» dizia.
Sempre disse que
nunca se casaria. Entende o casamento como um contrato burocrático com um pouco
de hipocrisia à mistura. Mas o seu companheiro é algo que Amélia muito
preserva. Como vontade é coisa que não lhe falta, busca algo que deseja e
acredita. Agora dedica-se também à filosofia com a companhia dos amigos mais
chegados. São noites que perdemos mas que justificam o tempo gasto. Usamos para
discussão «O Mundo de Sofia».
Cita com frequência
Jostein Gaarder. A melhor maneira de nos iniciarmos na filosofia é
colocar perguntas filosóficas. Como se formou o mundo? Haverá uma vontade ou um
sentido por detrás daquilo que acontece? Haverá vida depois da morte? Como
podemos encontrar resposta para estas perguntas? E, acima de tudo, como
deveríamos viver?
«Estas perguntas
foram colocadas desde sempre pelos homens. Não conhecemos nenhuma cultura que
não tenha perguntado quem são os homens e de onde vem o mundo. As perguntas
filosóficas que podemos colocar são muitas mais» para continuar
a argumentar que a «história oferece-nos muitas respostas diferentes. Mesmo
hoje, cada um deve encontrar as suas respostas para estas perguntas. Não
podemos saber se Deus existe ou se há vida depois da morte, consultando a
enciclopédia. A enciclopédia não nos diz como devemos viver. Mas ler o que
outros homens pensaram pode no entanto ser uma ajuda, se quisermos formar a
nossa própria concepção da vida e do mundo». Continuava a citar «A
capacidade de nos surpreendermos é a única coisa de que precisamos para nos
tornarmos bons filósofos»
Às vezes temos a
impressão que há uma misteriosa energia que nos une ao mesmo tema. Alturas
existem que até estranhamos os nossos próprios instintos. Até Dudu a mascote de Amélia, que nos faz
companhia, dá sinais para estarmos preparados para as supresas da vida.
Um dos nossos
amigos costuma filosofar «cada homem deve procurar o seu tesouro para que o
encontre. Os sinais farão o resto».
Numa das muitas
noites dos nossos serões, Amélia disse-nos «numa altura da nossa vida tudo é claro, tudo é possível, não temos medo de
sonhar e desejarmos aquilo que gostaríamos de realizar. Olhem para mim: 1.72 de
altura, uma vida de sofrimento, de dor, sem filhos mas vivendo com um homem que
me ama e amigos puros como vocês, onde alguns ainda sentem uma paixão por mim,
não me devo sentir feliz?»
Sabia que algo
lhe ia acontecer no dia que ia buscar o seu diploma a Lisboa. Desconfiou da
emoção que sentiu quando recebeu na entrega do papel que lhe daria o resultado
do esforço durante quase sete anos, mas não compreendeu o que sentia. Quando
próximo de Aveiras viu vir um veículo
pesado contra o seu carro é que se lembrou daquilo que não sabia mas que tinha
pressentido.
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