«Estes textos são apenas ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.»

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Para a Enfermeira, um burro carregado de couves



Por: António Centeio

Januário homem que já carrega quase oito dezenas de anos continua a querer mostrar que não se verga ao tempo e às coisas. O que lhe interessa é o seu espírito jovem e a pujança que sente dentro de si como das “forças vindas de um sítio qualquer” que não lhe impedem de todos os dias fazer a “amanha da sua terra”.
Todos os dias, quando se levanta e o Sol ainda está do “lado de lá de Espanha” depois dos preparos matinais senta-se na sua velha mesa para comer a sua “côdea acompanhada de um bocado de chouriço” para de seguida partir na desengonçada carroça puxada pelo “Jericó” o nome do burro, cuja idade do dito desconhece, porquanto já o comprou como “um burro velho” a um cigano numa Feira de Gado que se costuma realizar ali para os lados de Vale de Santarém.
Paragem obrigatória se torna a visita matinal na “Tasca do Fausto” a fim de tomar o seu caneco de café e respectivo bagaço em duplicado que lhe retemperam as forças para o dia que ainda não viu nascer a bola de fogo, mas que dele muito vai exigir.
Quando chega à sua herdade, a que chama de “Terra Seca” começa a tratar da “amanha” e de tudo que esta lhe pede para que “amanhã nada lhe falte como aos intermediários que o visitam para negociar o que a terra vem dando, julgando alguns que enganam o amigo Januário pela sua avançada idade” quando na verdade o conhecimento que foi adquirindo ao longo das luas, lhe deram sabedoria para numa cantilena cheia de manhas conseguir dar a volta a quem com intenção quer-lhe passar a perna. Assim e desta forma, tem conseguido levar a sua a avante “sem enganar o parceiro, como: deixar-se enganar”.
Apenas, e confessa, que o seu único fraco, mesmo com a idade que já leva, são as mulheres. Estas ainda continuam a apoquentar-lhe a cabeça e quando vê alguma saia, então a sua cabeça fervilha de coisas que já não estão a seu alcance.
Homem de uma enorme robustez física com um olhar profundo que “até queima por dentro quem para eles olha” tal é a nitidez do azul. Quanto a médicos apenas afirmava “não querer nada com eles” e no que tocava a doenças “nunca as teve”. Mas se as tivesse tido simplesmente encontraria a cura na “apanha das erva” que a sua avó lhe ensinou “servirem para curar todos os males, até os da língua”.

 Nunca recusou ajudar quem quer que fosse como contribui com o que esteja ao seu alcance, desde que possa extrair no que plantou ou a “Terra Seca” por razões desconhecidas lhe coloque na frente dos olhos aquilo que outrém possa usufruir.
Tudo isto até ao dia em que a sua calvície não resistindo ao calor da tarde cedeu aos infortúnios daquilo que a idade não perdoa. Deu-lhe um fanico qualquer que tombou de imediato para o cimo do canteiro de salsa que andava a regar. Valeu-lhe a visita inesperada de uma sua protegida, que de tempos a tempos o visitava para o consolar de algo que gostava mas não tinha e ao mesmo tempo lhe transmitir as últimas novidades do burgo já que o amigo Januário não era homens de mexericos ou de andar “sem nada fazer por locais onde se diz mal de todos e se gasta dinheiro sem necessidade”.
Quando não havia bisbilhotices a idosa inventava-as. Apenas não dizia mal de si própria, porque lhe ficava mal ou o ouvinte não acreditava no que acabava de saber. Mulher astuta que sabia “tirar os ovos debaixo da galinha sem ela dar por isso” pouco se lhe importando se: tivesse ou não de deitar-se debaixo de qualquer um, desde que, pudesse “levar para sua casa aquilo que não tinha”.
Aos gritos veio à aldeia pedir socorro que num ápice, alguém depois de ouvir o sucedido, pediu ajuda aos bombeiros. Em pouco minutos Januário estava no hospital. Neste, se manteve uma dúzia de dias sempre assistido por uma linda e simpática enfermeira.
Dada autorização para sair, pelo seu próprio meio, por via de estar curado, criou-se-lhe o problema de “como agradecer a gentileza a quem o tão bem tratou a cuidou”. Homem desconhecedor das modernices que fazem parte do mundo em que vive como de outras novidade e ignorante que continua a ser, daquilo a que alguns chamam de “boas-maneiras” já que os seus nunca lhe ensinaram “que tal coisa quer dizer”. Também não sabia que uma simples pequena lembrança resolveria o enguiço. Para agravar as regras já que no amanho da terra nem sempre se aprende aquilo que se deveria aprender na escola, na sua voz grosseirona, mas sincera, vai daí, perguntou a quem tanto o importunava com cuidados e outros mimos ”que quer como gratificação pelo que me fez?”
Da mesma, teve como resposta: “Nada! Apenas fiz a minha obrigação como faço para com todos os doentes”. De seguida, recebeu como sinal de carinho e respeito um beijo na cara, coisa que não estava nos pensamentos do madrugador.
Não ficando satisfeito com a recusa mas sentindo-se na obrigação de recompensar, agora mais do que nunca porque a especialista até lhe “deu um miminho na cara” foi para casa matutando na forma de contornar a coisa. Não encontrou solução ao problema nem soube descobrir outras formas. Homem habituado aos imprevistos e às partidas do tempo, ouviu, vindo das “profundezas da terra” a solução.
Poucos dias depois, apresentou-se no Hospital pedindo a presença da dita especialista. Depois de informada de quem a chamava do exterior, compareceu ao apelo. Perguntando-lhe o que desejava, obteve como resposta “ minha linda e bondosa enfermeira vá ali à rua e veja com os seus próprios olhos o que lhe trago como agradecimento pelo que me fez e como me tratou”. Em cima de “Jericó” estava um enorme carregamento de couves.

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