Por: António Centeio
“Tia
Almerinda”, de alcunha, saboreia até não poder mais os prazeres da vida. Calcorreia
tudo que é sitio e não há excursão, desde que esteja ao alcance da sua bolsa,
que não participe a fim de conhecer aquilo que nunca viu, seja longe ou perto.
Pouco se lhe importa se no país
onde vai não percebem o português que aprendeu quando tirou a antiga quarta
classe.
Para a substituir lá estão as “guias de turismo” que servem para
traduzir as suas dúvidas ou embaraços como quando foi à Grécia.
Precisava de um
“penso higiénico” mas na farmácia a que foi não perceberam nada do que dizia.
Chamou a “guia” que em principio deveria saber trocar por outras palavras
aquilo que a Tia Almerinda precisava, como não foi capaz, não está como meios
trocos: aponta com a mão para o sítio que necessitava de protecção. Já estava
traduzido para tudo acabar numa forte gargalhada como é timbre de quem estava
aflita.
Viveu perto de
três dezenas de anos com o seu falecido marido, que era um unhas-de-fome e
ainda por cima lhe dava valentes cargas de porrada. Jamais permitia a quem lhe
deus dois filhos que fosse passear para onde quer que fosse sem a companhia de
quem lhe fazia companhia e pai de seus filhos era. Trinta anos a sofrerem em
silêncio e humilhação.
Quando seu
marido faleceu por via de um acidente, sabe-se nas redondezas que para ela foi
um alívio. Toda a gente sabia que a união era baseada na amargura, mesmo que
escondesse de todos aquilo o que publico era. Na altura que o seu velho Afonsino, galego de nascença e”Caixeiro-Viajante” de profissão estava
para descer para a catacumba seus olhos nem uma lágrima derramaram.
Um galego que
sabia mais que o ”mestre de musica”. Quando vendia os seus produtos fazia um
choradinho que os clientes acabavam por ter «tanta pena do infeliz que mal
consegue sustentar a família». Manhoso de tal forma que até conseguia tirar os
ovos debaixo da galinha sem esta dar por isso. Com falinha mansa dava a volta aos seus clientes, e não só. Das suas
historietas destacava a miséria que seus pais passaram quando da Guerra Civil
de Espanha que tiveram vir descalços para o país vizinho onde seu pai começou
nova vida vendendo sacos de carvão pelos bairros lisboetas.
Tia Almerinda apenas encolheu seu
coração, não pela morte do pai dos seus pequenos, mas por um ser humano que «na
hora do caixão descer à terra da verdade» merece todo o respeito. Pena foi não
ter percebido em vida que afinal de pouco valeu ter sido como era quando tudo
acaba debaixo da terra.
Para mais Afonsino era um mulherengo de “primeira apanha” porquanto se
envaidecia, quando nas partidas domingueiras de dominó e de cavaqueira ter em
cada “Praça” que visitava uma”peça suplente”. Quando no ganho das
partidas recebia o “quarto de litro” a
boca dizia a sete ventos que todas as peças
suplentes mais não era do que amantes. Verdade ou mentira, prove quem ouviu,
mas não consta quem visse ou comprovasse.
Sua mulher, na
altura, na altura do enterramento, lembrou-se daquilo que algumas lhe diziam na
hora da coscuvilhice; ou por seus maridos quando vinham com o grãozito a mais
ou as línguas se enrolava por faltar fôlego de tanto ter escorrido pela
garganta, por via da cavaqueira e das
pedras se terem invertido da posição do ganho: «Oh mulher, sabes que o Afonsino
afiançou na taberna do Chico que em cada terra tem uma amante?».
Diziam os mais
sedentos por carinho das caras metades, bufando as prosas que ouviam e participavam».
Deixai-o vossemecês, homens dum raio, que não podem ver um rabo de saia. Deixa
que te diga que amanhã bem cedinho, quando for buscar os pães ao do Costa já conto tudo à Almerinda».
Ainda nem três
meses tinha passado de luto e já a Tia
Almerinda tinha alterado toda a sua vida. Os filhos já eram praticamente
uns homens e já andavam «com o coiro nas obras» porque não gozar agora daquilo
que o defunto deixou e lhe garantiu como “pensão”
para o resto da vida, desde que não casasse com outro?
Nada então como
aproveitar o resto do tempo que por obra de Deus ainda lhe estava destinado.
Não viesse pior ainda alguma partida do destino e a levasse «desta para
melhor», começou Tia Almerinda e
muito bem, a percorrer tudo que é sitio.
Um dia destes
encontrei-a para os lados das Lapas. De tão diferente estar e passados tantos
anos de desencontros e de ausência, quer pela sua parte quer pela minha como
ainda das nossas famílias, nem nos conhecemos.
Toda janota,
fizemos recuar o tempo cerca de cinco anos, altura em que nos vimos e
conversamos pela última vez. Senti-me deveras inconformado pela altivez e
conhecimentos de quem tinha conhecido como uma pessoa humilde e de poucas
falas. Ao pé dela, depois de a ter ouvido sintetizar os seus percursos e demais
histórias, reconheço que não passo de um ignorante, tal é a bagagem cultural
que adquiriu por ter percorrido mais países em seis meses que eu durante toda a
minha vida.
Na hora de
despedida, mesmo que antes tenha levado com uma seca de história e vistos
montes de lembranças dos mais variados países, que na sua casa estão pendurados
e expostos na sala de jantar «para que todos possam saber que quem os expôs é
uma mulher viajada» assim o disse.
O próximo
passeio vai ser ao Egipto. Prometeu-me trazer um escaravelho daqueles que dão sorte; não um escaravelho qualquer mas daqueles embalsamados numa mixórdia qualquer
que quem os tiver «tem sorte toda a vida». Como mensagem final: «bendita a hora
que o Afonsino foi desta para melhor,
caso contrário, já andava para aí aos caídos»
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